Na estrada, com os caminhoneiros
‘Estado’ percorreu mais de 2 mil km com um caminhoneiro entre Sinop (MT) e Araucária (PR); no caminho, estradas ruins e pedágio caro.
Pelo rádio, caminhoneiros que formam comboios trocam oração e brincadeiras. Foto: Daniel Teixeira/Estadão
O sol ainda nem despontou no horizonte e Nirley de Freitas já está de pé para mais uma viagem. Escova os dentes, lava o rosto, prepara um chimarrão e verifica a calibragem dos 34 pneus do Volvo FH 540. Pelo rádio, convoca os amigos para uma oração. Reza um Pai Nossa e uma Ave Maria, pede proteção a Deus e acelera rumo ao Sul do País. Com quase 50 toneladas de soja, divididas em duas caçambas, o caminhoneiro percorrerá 2.350 quilômetros de Sinop (MT) até o destino final, em Araucária (PR). No trajeto, vai atravessar os Estados de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, São Paulo e Paraná.
Durante quatro dias, a reportagem do Estado acompanhou a rotina de Freitas a bordo de seu caminhão Robocop, de 9 eixos, 2018. A viagem começou em Sinop, às 5h30 do dia 16 de maio e terminou às 21h40 de domingo, dia 26 – mas ele só descarregou na terça-feira. Por mais de duas semanas, o Estado procurou um motorista com quem pudesse fazer a viagem. Mas, por causa da falta de fretes decorrente da crise econômica, só conseguiu na terceira tentativa quando Freitas pegou uma carga para o Sul.
Paranaense, da cidade de Ivaiporã, ele virou caminhoneiro há 10 anos, depois de trabalhar com o pai na agricultura. Chegou a fazer curso de genética e inseminação artificial de animais, mas abandonou tudo para viver na boleia de um caminhão. Só nos últimos 12 meses, percorreu mais de 100 mil km pelo Brasil – distância maior do que dar duas voltas na terra. Nos últimos tempos, porém, anda desiludido com a profissão e já faz planos para mudar de vida. “Mas ser caminhoneiro é como um vício. Apesar dos problemas, é difícil largar.”
Anotações de gastos com diesel: nesta viagem foram R$ 5.252. Foto: Daniel Teixeira/Estadão
Freitas compra pendrive com músicas: caminhoneiros fazem 'disputa' de playlists. Foto: Daniel Teixeira/Estadão
Os grupos de WhatsApp são companhias constantes durante a viagem. Foto: Daniel Teixera/Estadão
Estradas remendadas. As reclamações de Freitas são ilustradas durante toda a viagem. No primeiro dia, foram quase 700 km rodados até Rondonópolis, pela BR-163 – estrada quase toda de pista simples, com poucas áreas de ultrapassagem. Meca do agronegócio brasileiro, por onde circulam milhões de reais todos os dias, a região tem rodovias sob concessão privada e com pedágios elevados. Mas isso não se reflete na qualidade das estradas, que têm asfalto ruim e remendos no pavimento.
O desnível entre a pista e o acostamento é um perigo constante para um caminhão que pesa no total 74 toneladas (carga mais veículo) e custa cerca de R$ 650 mil. Qualquer descuido, o veículo pode tombar. Por causa dos solavancos, os pneus sempre são danificados – Freitas até saiu no lucro durante a viagem, com apenas um pneu furado e outro com vazamento no bico.
Pela falta de segurança – e também, pela solidão –, os motoristas procuram viajar em comboios. Seguiram com Freitas, Clemilton Bueno Terra, conhecido como Cipó; Gustavo Aparecido de Oliveira, o Paraguai; e Leonildo Amarildo Soares, apelidado pelos demais de Gordinho. Apesar de terem se conhecido um dia antes do início da viagem, eles pareciam amigos de décadas. “A parte mais difícil é a solidão. Quando tem mais gente, fica mais fácil”, diz Freitas.
Divertidos, gastam o tempo na boleia fazendo piadas e tirando “sarro” um do outro pelo rádio. Quando o ânimo começa a baixar ou o sono chega após o almoço, é hora de sacar o aparelho e começar a “prosear”. Pelo rádio, eles fazem até disputa da melhor playlist com músicas de caminhoneiros – quase sempre de canções sertanejas.
Estacionamentos lotados. Na hora de dormir, surge um novo problema. Com a quantidade de motoristas pela estrada, os postos com estacionamento ficam lotados. E, no caso de Freitas, seu caminhão não pode trafegar à noite. Em alguns locais, os postos chegam a cobrar R$ 45 pela pernoite e R$ 9 pelo banho. Mas, se o motorista abastecer o caminhão no estabelecimento, os serviços são de graça.
Depois de um dia inteiro na estrada, ainda sobra disposição para preparar o jantar no próprio caminhão. O cardápio varia de macarrão a um cozido de arroz, batata e linguiça, feito na panela de pressão. Sentados em cadeiras de praia ou banquinhos de plástico, eles comem, tomam cerveja e colocam as conversas dos grupos de WhatsApp em dia. Também aproveitam para fazer selfies para enviar para as famílias – eles chegam a ficar um mês sem ver os parentes. Do comboio que seguiu com Freitas, todos estavam há mais de 20 dias fora de casa.
Nirley de Freitas arruma a cama na boleia do caminhão parado em um posto. Foto: Daniel Teixeira/Estadão
Diesel e pedágio caros. A cada parada no posto para abastecer ou a cada pedágio pago o humor dos caminhoneiros muda. De Sinop a Araucária, Freitas gastou R$ 5.252 de combustível – quase 50% do valor do frete, de cerca de R$ 11 mil. Por causa da variação de preços, eles abastecem o caminhão a conta gotas. Quanto mais ao Sul, menor o valor do combustível. No Centro-Oeste, eles chegaram a pagar R$ 4,19 o litro do diesel S-10 enquanto a média nacional está em R$ 3,79.
No caso do pedágio, a lógica é inversa: quanto mais ao Sul, mais caro o valor cobrado dos caminhoneiros. Em todo o percurso, Freitas passou por 23 pedágios e desembolsou mais de R$ 1,3 mil. O maior deles, no Paraná, custou R$ 88,20.
Durante todo o trajeto, os postos da polícia rodoviária estavam praticamente vazios e as balanças de pesagem, fechadas. Quase metade do percurso foi feito pela BR-163, hoje concedida à Odebrecht e à CCR. Em São Paulo, os caminhoneiros conseguem dar uma velocidade maior ao caminhão ao passar pela rodovia Castelo Branco. Dali voltam para as pistas simples em várias estradas federais e estaduais até chegar a Araucária, onde Freitas só descarregou dois dias depois.
Depois dessa maratona de quatro dias, ele não parou para descansar. Na quarta-feira, 22, já voltou às estradas. Só que desta vez no sentido contrário. Ele carregou adubo em Paranaguá (PR) e vai levar até Maracaju (MS). Provavelmente, voltará carregado com soja ou milho, mais uma vez.
Atravessador. Uma das principais reclamações dos caminhoneiros é com a intermediação do frete. No caso de Nirley de Freitas, a fazenda contratou uma transportadora por R$ 15,17 mil mais R$ 1,08 mil de pedágio para fazer o transporte de Sinop (MT) até Araucária (PR). A transportadora, por sua vez, contratou um caminhoneiro por R$ 11 mil para fazer o transporte.
Desse montante, o motorista vai tirar o valor do diesel, do pedágio e a manutenção/desgaste do caminhão. No final, vai sobrar algo em torno de R$ 3,5 mil para o caminhoneiro. “Por outro lado, a transportadora que usou caminhão e não gastou nada vai embolsar mais de R$ 5 mil”, diz Freitas.
FONTE ESTADÃO