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Implicações da "MP da liberdade econômica" no planejamento tributário

OPINIÃO

Por Paulo Honório de Castro Júnior e Pedro Henrique Garzon Ribas

Em palestra no último Congresso de Direito Tributário organizado pela Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF), Ricardo Mariz de Oliveira deu o tom de sua fala ao afirmar: “Não é possível tratar sobre Direito Tributário sem conhecer o Direito Privado. E é impossível fazer planejamento tributário sem conhecer Direito Civil”[1]. Apesar de singela à primeira vista, deve-se ressaltar a extrema importância da lição do ilustre professor, principalmente após a edição da Medida Provisória 881/2019 — também conhecida como “MP da liberdade econômica” —, agora convertida no PLV 17/2019.

Oportunamente, destacamos que o presente estudo é produto dos debates realizados em seminário[2] organizado pelo Instituto Mineiro de Direito Tributário (IMDT) em parceria com o Conselho Regional de Contabilidade de Minas Gerais.

Pois bem, afirmar a existência de íntima relação entre a aludida MP e o Direito Tributário pode causar certa estranheza, sobretudo quando feita uma leitura apressada do texto em comento. Logo em seu artigo 1º, parágrafo 2º[3], determina-se que, ressalvado o predicado no inciso X do artigo 3º — que traz regra sobre o direito do particular de arquivamento de documentos por meio de microfilme ou meio digital —, não seriam aplicáveis ao Direito Tributário e ao Direito Financeiro as regras extraídas dos artigos 1º ao 4º e que, em linhas gerais, podem ser consideradas como o “coração” da MP 881. O mesmo ocorre no PLV 17/2019, vide artigos 1º, parágrafo 1º, e 24, parágrafo 2º.

Nesse sentido, questiona-se: a tão aclamada Declaração de Direitos de Liberdade Econômica — como assim a MP se autointitula —, que estabelece normas de proteção à livre-iniciativa e ao livre exercício de atividade econômica, não exerceria qualquer influência no Direito Tributário, notadamente no julgamento de questões como a validade e a oponibilidade de planejamentos tributários em face do Fisco? A nosso ver, não seria bem assim.

Recapitulando o ensinamento de Mariz de Oliveira, reafirma-se a impossibilidade, ou, no mínimo, o equívoco que seria avaliar, para fins tributários, os efeitos das diferentes operações econômicas realizadas pelos particulares, de forma completamente dissociada do regramento civil que lhes confere validade e substância jurídica. Noutras palavras, a qualificação dos negócios realizados pelos particulares deve sempre ser feita à luz do diploma normativo que lhes outorga existência, validade e eficácia.

Nesse sentido, parece inexistir outra conclusão senão a de que, da mesma forma que o Direito Privado não se preocupa com as implicações tributárias advindas dos fatos ou negócios jurídicos por ele regulados, não caberia (ou não deveria caber) ao Direito Tributário (e muito menos à autoridade fiscal) buscar imputar substância econômica outra se não aquela já legalmente conferida aos negócios feitos em conformidade com o que a lei civil determina. Ou seja, tirante os casos em que reste inequivocamente comprovada a existência de algum defeito no negócio jurídico realizado pelo particular, não caberia ao aplicador da norma tributária investigar aquilo que o contribuinte quis, ou deixou de querer, quando da realização de determinada operação.

E é justamente essa conclusão que entendemos ter sido enaltecida pela MP 881/2019.

Como exposto anteriormente, o parágrafo 2º do artigo 1º da MP 881 excepcionou expressamente a aplicação das regras advindas dos artigos 1º a 4º ao Direito Tributário e ao Direito Financeiro, assim como faz o PLV 17/2019. Todavia, em seu artigo 7º (não excepcionado, portanto, ao Direito Tributário, assim como o correspondente artigo 32 do PLV), a "MP da liberdade econômica" alterou, dentre outros pontos, a redação do artigo 421 do Código Civil, que passou a prescrever que “a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato, observado o disposto na Declaração de Direitos de Liberdade Econômica”. E não é só. Introduziu-se ainda um parágrafo único nesse mesmo dispositivo, dispondo expressamente que: “nas relações contratuais privadas, prevalecerá o princípio da intervenção mínima do Estado, por qualquer dos seus poderes, e a revisão contratual determinada de forma externa às partes será excepcional”[4].

Pois bem, de acordo com o novíssimo artigo 421 do Código Civil, a liberdade de contratar será norteada pela função social do contrato e pelas regras e princípios que fundamentam o disposto na Declaração de Direito de Liberdade Econômica (MP 881). Dentre eles, destacam-se: i) a presunção de liberdade no exercício de atividades econômicas (inciso I do artigo 2º); ii) a presunção de boa-fé do particular (inciso II do artigo 2º); e iii) a intervenção subsidiária, mínima e excepcional do Estado sobre o exercício de atividades econômicas (inciso III do artigo 2º)[5], entre tantos outros.

Soma-se a isso, o teor do artigo 5º do PLV 17/2019, que torna obrigatória a interpretação em favor da liberdade econômica e do respeito aos contratos. Seu parágrafo único ainda determina que a aludida regra seria aplicável a “qualquer esfera”, leia-se: “As normas e as autoridades públicas de qualquer esfera estimularão e privilegiarão o cumprimento dos contratos...”.

E são nesses pontos onde estão as grandes contribuições da "MP da liberdade econômica" para o planejamento tributário brasileiro.

Como se sabe, a atividade do chamado “operador do Direito” não se resume à interpretação da lei em abstrato. Ela vai além. Deve o intérprete se preocupar também com a qualificação jurídica dos fatos, tal como estes se apresentam concretamente no mundo, identificando seus respectivos elementos de relevância, os quais, para serem assim determinados, devem estar devidamente comprovados.

Portanto, não bastando a inaplicabilidade no Direito Tributário brasileiro de teorias como a da prevalência do conteúdo econômico na interpretação da lei tributária (historicamente rechaçada pelo legislador ordinário, desde a elaboração do CTN), da investigação do propósito negocial ou do substrato econômico das operações, entre tantas outras diuturnamente invocadas pelas autoridades fiscais para declarar defeituosos negócios jurídicos perfeitos à luz da legislação civil, mas que ocasionam redução da carga fiscal do contribuinte, o novo artigo 421 do Código Civil traz ainda mais um “escudo” para o cidadão. Determina-se, expressa e literalmente, que o direito à liberdade de contratar do particular deverá ser livre e, quando exercido, será presumidamente dotado de boa-fé, tendo o Estado poder de intervenção mínima e subsidiária.

A racional legitimada pela MP 881, e reforçada pelo PLV 17/2019, é de que os efeitos tributários de atos e negócios jurídicos devem ser interpretados de forma a assegurar a liberdade econômica e a respeitar contratos. Com mais razão, reitera-se a impossibilidade de se admitir as conhecidas requalificações de operações lícitas por parte das autoridades fiscais, tão somente para cobrar tributos, com fundamento na capacidade contributiva e na solidariedade. É direito do contribuinte poder calcular[6] os efeitos fiscais dos negócios privados livre e licitamente pactuados, conforme a oportuna lição de João Francisco Bianco[7]:

“Para o Direito, portanto, as partes são livres para contratar tanto o mútuo como a compra com retrovenda. E, embora os mesmos fins econômicos pretendidos possam ser atingidos com ambos os contratos, cada um deles tem natureza jurídica própria, distinta do outro, e segue regime jurídico próprio, distinto do outro. E logicamente cada um deles será submetido a regime tributário próprio, distinto do outro, pois a incidência tributária segue a natureza jurídica da operação realizada e não a sua essência econômica” – (grifamos).

Ainda em relação à interpretação dos negócios jurídicos realizados pelos particulares, o PLV 17/2019 também inovou em relação à MP 881 ao instituir os parágrafos 1º e 2º no artigo 113, do Código Civil.

O primeiro parágrafo cria verdadeiro mecanismo de interpretação da natureza do negócio jurídico, determinando-se que seu sentido seja verificado conjuntamente pelos seguintes elementos: i) o comportamento das partes posterior à celebração do negócio, o que, em planejamento tributário, costuma-se chamar “viver o planejamento”[8], para que não se possa desqualificá-lo por artificialidade; ii) os usos, costumes e práticas de mercado, o que normalmente já é feito pelas autoridades fiscais, na investigação, por exemplo, dos chamados “negócios indiretos”; iii) a boa-fé, presumida pela MP; e iv) pela razoável negociação das partes, inferida das demais disposições do negócio jurídico e, se possível, da racionalidade econômica das partes, a ser identificada por informações concretas, jamais por mera presunção de intenções psicológicas. Já o segundo parágrafo determina que o próprio contrato poderá dispor livremente sobre as regras relativas à sua interpretação, ainda que diversas daquelas prescritas em lei.

Portanto, em matéria de planejamento tributário, a MP 881 acaba por reforçar o dever (ou ônus da prova) da autoridade fiscal de comprovar a existência de defeito no negócio jurídico realizado pelo particular, como ainda deixa claro que a presunção de validade e eficácia desses negócios correrá sempre em favor do contribuinte. Isso tudo visando a um objetivo maior: promover a liberdade econômica, a segurança jurídica e o ambiente de negócios no Brasil.

Em suma, ganha o contribuinte, que passa a ter o Estado como parceiro, e não como inimigo. Ganha o Estado, com a estimada geração de 3,7 milhões de empregos em razão da MP[9] e com o incremento da atividade econômica, promovida num meio onde o interesse público de arrecadação fica realmente limitado àquilo que a lei autoriza. Ganha a Constituição de 1988, cujas normas, muitas vezes esquecidas, são reafirmadas em favor da sociedade brasileira.


[1] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=j0Uz8sFHq3k&t=351s. Acesso em 15/7/2019.
[2] Cf. <http://diariodocomercio.com.br/sitenovo/especialistas-apontam-mudanca-em-aplicacao-da-lei-tributaria-com-mp> Acesso em 20/7/2019.
[3] “Art. 1º Fica instituída a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, que estabelece normas de proteção à livre iniciativa e ao livre exercício de atividade econômica e disposições sobre a atuação do Estado como agente normativo e regulador, nos termos do disposto no inciso IV do caput do art. 1º, no parágrafo único do art. 170 e no caput do art. 174 da Constituição.
(...)
§ 2º Ressalvado o disposto no inciso X do caput do art. 3º, o disposto no art. 1º ao art. 4º não se aplica ao direito tributário e ao direito financeiro.”
[4] “Art. 7º A Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil, passa a vigorar com as seguintes alterações: (...)
Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato, observado o disposto na Declaração de Direitos de Liberdade Econômica.
Parágrafo único. Nas relações contratuais privadas, prevalecerá o princípio da intervenção mínima do Estado, por qualquer dos seus poderes, e a revisão contratual determinada de forma externa às partes será excepcional.”
[5] “Art. 2º São princípios que norteiam o disposto nesta Medida Provisória:
I - a presunção de liberdade no exercício de atividades econômicas;
II - a presunção de boa-fé do particular; e
III - a intervenção subsidiária, mínima e excepcional do Estado sobre o exercício de atividades econômicas.”
[6] “8.1 O aspecto material da segurança jurídica, relativo ao termo ‘segurança’, denota um estado de cognoscibilidade, de confiabilidade e de calculabilidade: [...]; de calculabilidade, em vez de previsibilidade (absoluta), porque, apesar de a CF/88 conter uma série de regras destinadas a permitir uma antecipação da ação estatal, como são os casos das regras da legalidade e da anterioridade, a natureza do Direito, vertido este em linguagem indeterminada e dependente de processos argumentativos para a reconstrução de sentidos, impede a existência de univocidade semântica dos seus enunciados”. ÁVILA, Humberto. Segurança jurídica: entre permanência, mudança e realização no Direito Tributário, 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 682.
[7] BIANCO, João Francisco. Aparência econômica e natureza jurídica. In: MOSQUERA, Roberto Quiroga; LOPES, Alexsandro Broedel (coord.). Controvérsias jurídico-contábeis (aproximações e distanciamentos). São Paulo: Dialética, 2010, p. 181.
[8] “De qualquer forma, no âmbito tributário, tenha-se em conta que decisivo para caracterizar a simulação não é o motivo econômico da escolha da forma jurídica (evitar tributação maior), mas o descompasso entre a forma escolhida e os efeitos jurídicos em face da situação econômica visada ou alcançada: as partes adotam uma forma, mas agem de modo incompatível; por exemplo, fazem uma venda a prazo, mas cobram aluguéis por tempo determinado, e, ao cabo, desfazem (denunciam) a compra e venda”. FERRAZ JÚNIOR. Tércio Sampaio. Simulação e Negócio jurídico indireto no Direito Tributário e à luz do novo Código Civil. Revista Fórum de Direito Tributário, n. 48, Editora Fórum, p. 23.
[9]Cf. <http://www.economia.gov.br/central-de-conteudos/publicacoes/notas-informativas/2019/ni_mp_liberdade_economica.pdf> Acesso em 20/7/2019.

 

 é sócio no William Freire Advogados e presidente do Instituto Mineiro de Direito Tributário (IMDT).

 é sócio do Maneira Advogados, professor na PUC-Minas e mestre em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo (USP).

 

FONTE Revista Consultor Jurídico